Jurisprudência em Destaque

STJ. 4ª T. Família. União estável. Concubinato. Ação de reconhecimento de união estável. Homem casado. Ocorrência de concubinato. Indagações acerca da vida íntima dos cônjuges. Impertinência. Inviolabilidade da vida privada. Separação de fato não provada. Ônus da prova que recai sobre a autora da ação. Considerações do Min. Luis Felipe Salomão sobre o tema. CCB/2002, arts. 1.723, § 1º, e 1.727. CF/88, art. 226, § 3º. Lei 9.278/1996. Lei 8.971/1994. CPC, art. 333.

Postado por Emilio Sabatovski em 16/06/2012
«... 2. Convém registrar, desde já, que, no julgamento do REsp 912.926/RS, este Colegiado, dando provimento ao recurso especial, afastou o reconhecimento de uniões estáveis simultâneas.

Naquela oportunidade, asseverei a premissa de sobredireito da qual se deve partir, segundo penso, para conferir a solução jurídica a casos como o dos autos: não se discute a possibilidade de, no mundo dos fatos, haver mais de uma união com vínculo afetivo e duradouro, com o escopo de constituição de laços familiares, o que evidentemente acontece.

O que se perquire é se, ainda que de fato haja vínculos afetivos desse jaez, o ordenamento jurídico confere-lhes alguma proteção.

Vale dizer, indaga-se se as relações afetivas com esses caracteres, simultâneas, recebem, não de fato, mas juridicamente, o predicativo de «união estável».

Isso porque é de tempos conhecida a máxima kelseniana, segundo a qual «a norma é um dever-ser e o ato de vontade de que ela constitui o sentido é um ser» (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6 ed. [Tradução João Batista Machado]. São Paulo: Martins Fontes, 1998).

Tal perspectiva é absolutamente essencial ao entendimento do fenômeno jurídico, porque se percebe que a mente humana, a sociedade e a complexa cadeia de relações sociais são muito mais inventivas que o criador do direito, o qual, ordinariamente, vem a reboque quando verificado o fenômeno social no mundo dos fatos.

Por isso que a situação fática perante a qual se depara o observador, o aplicador do direito, pode ou não ser tutelada pelo ordenamento jurídico, quer este proibindo-a, quer permitindo-a e lhe conferindo efeitos jurídicos, quer, ainda, a ela (à situação fática) sendo indiferente.

Não por acaso a comezinha notícia histórica acerca da criação de conceito basilar para o direito privado - o conceito de relação jurídica - dá conta da existência de relações sociais parcial ou totalmente desprovidas de juridicidade, como bem asseverou Savigny, ainda no século XIX:


Em conseqüência, toda relação de direito compõe-se de dois elementos: primeiro, uma determinada matéria, a relação mesmo; segundo, a idéia de direito que regula essa relação. O primeiro pode ser considerado como elemento material da relação de direito, como um simples fato; o segundo, como o elemento plástico que enobrece o fato e lhe impõe a forma jurídica. Todavia, nem todas as relações de homem a homem entram no domínio do direito, nem todas têm necessidade, nem todas são suscetíveis de serem determinadas por uma regra de tal gênero. Cabe, pois, distinguir três casos: ora a relação está inteiramente dominada por regras jurídicas, ora está somente em parte, ora escapa a elas por completo. A propriedade, o matrimônio e a amizade podem servir como exemplo dos três diferentes casos (SAVIGNY, Friedrich Karl Von. Da vocação no nosso tempo para a legislação e a ciência do direito. apud. AMARAL. Francisco. Direito civil: introdução. 6 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 162).

O exemplo positivado de relações sociais que não geram efeitos jurídicos, ao menos no âmbito do direito de família - e até que o legislador opte por uma solução diferente, se optar -, é o chamado concubinato (antigamente dividido em puro e impuro), verificado nas relações afetivas não eventuais, quando no mínimo uma das partes está impedida de se casar ou, se casada, não se separou de fato de seu cônjuge.

É o que preceituam os arts. 1.723, § 1º, e 1.727, ambos do Código Civil de 2002, verbis:


Art. 1.723. [...]


§ 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.


[...]


Art. 1.727. As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.

Ou seja, mesmo que determinada relação não eventual reúna as características fáticas de uma união estável, em havendo o óbice, para os casados, da ausência de separação de fato, não há de ser reconhecida a união estável.

3. No caso ora em exame, não remanescem dúvidas de que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul declarou haver união estável entre a recorrida e o falecido, por três anos, não obstante esse não tivesse desfeito o vínculo conjugal com a ora recorrente.

É incontroverso que a autora, ora recorrida, manteve relação afetiva com o de cujus com características de união estável, sobretudo pelo caráter não eventual do relacionamento.

O ponto mais controvertido reside em saber se houve rompimento do vínculo conjugal, cuja ausência acarretaria a improcedência do pedido, nos termos do art. 1.732, § 1º, do Código Civil de 2002.

A sentença , por exemplo, deixa claro que não havia prova segura de que o falecido, em vida, teria deixado, por completo, o lar conjugal, sem duvidar que a autora mantinha, de fato, uma relação não eventual com o de cujus.

Nessa linha se manifestou o Juízo sentenciante:


Os depoimentos colhidos mostram-se controvertidos, pois enquanto os testemunhos de Maria Odete de Oliveira, Carla Simone Follmer e José Antônio Machado atestam que o falecido vivia com a autora, os depoimentos de Luis Otávio dos Santos Kirst, Sérgio Pacífico Fontana, Magda Schwerz, Éclair Nunes e Nunes e Janara Saldanha Garcia evidenciam que o de cujus vivia com sua esposa Iarahy, da qual não teria se separado.


[...]


Registro que no caso em tela, está presente a existência de casamento realizado entre o falecido e Iarahy, fl. 118. Sublinho, conforme narrado acima, que este fato é um impeditivo para a declaração da união estável pleiteada pela autora.


Ressalto que era da requerente o ônus de comprovar que, de fato, mantinha relacionamento de união estável com o falecido. Assim, para que houvesse o reconhecimento de união estável, a autora teria que ter realizado prova irrefutável, acerca da separação judicial ou fática do falecido. Sublinho que não houve comprovação nesse sentido.


[...]


Repiso, a prova demonstra que o de cujus mantinha relação amorosa com a autora, fato que restou comprovado por diversas testemunhas, mas essa relação não caracteriza união estável, na medida em que, concomitantemente, ele mantinha a convivência marital com sua esposa, não restando comprovado que, em algum momento, tenha Maurício efetivamente tentado terminar o casamento para formar uma entidade familiar com a autora. (fl. 319)

O voto condutor do acórdão proferido em grau de apelação, à sua vez, acionou princípios constitucionais para reconhecer a união estável paralela ao casamento, no sentido de que «o aparente óbice legal representado pelo § 1º do art. 1.723 do Código Civil fica superado diante dos princípios fundamentais consagrados pela Constituição Federal de 1988, principalmente os da dignidade e da igualdade» (fl. 370).

Tal entendimento, é bom ressaltar, por si só ofende a Súmula Vinculante 10 do STF, segundo a qual «viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte».

Além do mais, o próprio STF, em mais de uma oportunidade, sufragou a tese de descaber o reconhecimento jurídico de concubinato paralelo ao casamento, mesmo quando esteja demonstrado o vínculo não eventual entre os concubinos.

Refiro-me, por exemplo, ao precedente firmado por ocasião do julgamento do RE 397.762-8/BA, relator Ministro Marco Aurélio, no qual se pretendia, como que por peça do destino, o reconhecimento de união estável ente o Sr. «Valdemar do Amor Divino» e a Sr. «Joana da Paixão Luz», com quem o varão teve nove filhos, embora houvesse mantido, em paralelo, casamento válido com sua esposa, e com quem tivera outros onze rebentos.

O Supremo Tribunal Federal, a despeito do reconhecimento da publicidade, estabilidade e continuidade do vínculo mantido entre o falecido e a pleiteante, do qual originou o nascimento de nove filhos, no decorrer de longos trinta e sete anos em que a relação perdurou, não reconheceu como união estável o relacionamento então existente, mas mero concubinato.

A ementa do acórdão é a seguinte:


COMPANHEIRA E CONCUBINA - DISTINÇÃO. Sendo o Direito uma verdadeira ciência, impossível é confundir institutos, expressões e vocábulos, sob pena de prevalecer a babel. UNIÃO ESTÁVEL - PROTEÇÃO DO ESTADO. A proteção do Estado à união estável alcança apenas as situações legítimas e nestas não está incluído o concubinato. PENSÃO - SERVIDOR PÚBLICO - MULHER - CONCUBINA - DIREITO. A titularidade da pensão decorrente do falecimento de servidor público pressupõe vínculo agasalhado pelo ordenamento jurídico, mostrando-se impróprio o implemento de divisão a beneficiar, em detrimento da família, a concubina.


(RE 397762, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 03/06/2008).

Esse entendimento também vem sendo adotado pelo STJ em diversos precedentes: REsp 1.185.653/PE, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 7/12/2010; REsp 1.104.316/RS, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 28/4/2009.

4. Retomando o curso do raciocínio, e voltando à análise do caso posto a julgamento, o acórdão de apelação, embora tenha suscitado dúvidas acerca do efetivo desfazimento do vínculo matrimonial, reconheceu a união estável, entendendo também que só existiam «fortes indícios» da separação de fato, mostrando-se relevante para a decisão estadual a circunstância de que o falecido, a despeito de pernoitar na casa da esposa, dormia em quarto separado e não mantinha «relações íntimas» com ela no último ano.

Nesse sentido, confira-se o seguinte trecho do acórdão:


Ainda que existente nos autos a prova testemunhal produzida pelas rés, consubstanciada nos depoimentos do LUIS OTÁVIO (fl. 204), SÉRGIO (fl. 205), MAGDA (fl. 206), ÉCLAIR (fl. 220) e JANARA (fl. 224), dando conta que MAURÍCIO era casado com IARAHY, com quem sempre manteve o casamento, não tendo ocorrido a separação de fato aludida na petição inicial, há fortes indícios nos autos de que efetivamente existia a separação de fato, já que, embora ele freqüentasse a casa da esposa regularmente, quando lá pernoitava ele dormia em quarto separado, conforme, aliás, reconhece a própria IARAHY (esposa de MAURÍCIO) em seu depoimento, onde referiu, inclusive, que «No último ano não mantinham relações íntimas» (fl. 191) (fl. 371)

Porém, como o próprio acórdão de apelação confirma, a situação dos autos revela a convivência dupla do falecido, tanto com sua esposa quanto com a «companheira», extraindo a conclusão de que este mantinha a autora como se esposa também o fosse, verbis:


[...] embora tenham sido as rés que providenciaram no pagamento do sepultamento de MAURÍCIO, era na companhia e na casa da autora que ele estava quando veio a falecer. Era lá que se encontravam seus documentos e seu veículo, entregues posteriormente pela autora às rés, conforme estas reconhecem na contestação. Ainda, foi à autora quem acompanhou o companheiro durante todo o tratamento ortopédico que ele realizou numa clínica, por quase dois anos, conforme o atestado de fl. 208.


Na verdade, os autos retratam situação em que há união estável e o casamento, concomitantemente. E a união estável que foi delineada nos autos não pode deixar de produzir efeitos no mundo jurídico, já que perfeitamente caracterizada como entidade familiar.


Na espécie, a união com a companheira mostrou-se tão ou mais forte ou tão ou mais união familiar do que o casamento oficial de MAURÍCIO, durante a sua vigência.


Existia a affectio maritalis e a comunhão de vida entre o falecido e a autora. Está-se diante, pois, daquelas situações de fato excepcionais que autorizam o reconhecimento da união estável paralela ao casamento [...] (fl. 373).

O acórdão proferido em sede de embargos infringentes, à sua vez, trazendo uma nova justificativa, afirmou que a manutenção do vínculo com a esposa deveu-se ao estado de saúde desta, como que por razões humanitárias, circunstância que fortaleceria a possibilidade do reconhecimento da união estável paralela ao casamento, verbis:


O que se observa do processado é que Maurício passou a manter relacionamento afetivo com Magda, provavelmente na época indicada na inicial (1999/2000), reconhecendo Magda que Maurício era casado, embora assumisse a justificativa de que este não tinha mais convivência conjugal com a esposa (fl. 189).


Maurício era casado com Iarahy desde 1968 e administravam juntos uma empresa de taxi aéreo.


O namoro, com característica de concubinato, evoluiu até que, a partir de 2002, Magda e Maurício alugaram uma casa em Canoas, na Rua Santa Maria, 806, onde passaram a residir.


Exatamente nesta época, mais precisamente em 10.8.02, Iarahy sofreu grave acidente, realizando quatro cirurgias no final do ano (fl. 191). A partir de 2003 ficou imobilizada, cuidada pelas «enfermeiras». Eclair e Janara (fls. 220 a 227). Iarahy, em seu depoimento (fl. 191), admite que desconfiava que Maurício tinha uma relação com a autora, «pois ele chegava de madrugada várias vezes por semana...Passou a desconfiar no final de 2003 e no ano de 2004. Sabia que o de cujus chegava de madrugada pelo que as enfermeiras lhe contavam».


Iarhay ficou imobilizada na cama, necessitando de auxílio total das enfermeiras, ao menos até 2004 quando «conseguiu se locomover sozinha». (fl. 191). Como ela gritava à noite, a enfermeira possuía um quarto ao lado do seu, para poder prestar o imediato atendimento.


Nitidamente, ao ver do Relator, esta circunstância fez com que Maurício não abandonasse definitivamente o lar, mantendo uma presença formal/material/afetiva, em hora dramática, ainda que mantivesse o seu relacionamento com a autora, razão que justifica a carta de fl. 119, embora não comprovada a data de sua emissão.


[...]


Tudo está a revelar que houve, efetivamente uma união estável entre Maurício e a autora, ainda que, nas circunstâncias fáticas, não tenha o varão se desvinculado, completamente, da residência mantida com Iarahy, pelas circunstâncias já referidas (fls. 428-431).

4.1. A propósito da assertiva do acórdão proferido nos embargos infringentes, sobre as circunstâncias que justificariam não ter o varão abandonado «definitivamente o lar, mantendo sua presença formal/material/afetiva, em hora dramática», cumpre ressaltar que é quase inútil a indagação acerca dos contornos necessários à caracterização desse vínculo multiforme chamado casamento, e, por consequência, da caracterização perfeita de uma separação de fato.

O Código Civil de 2002 não define o que seja separação de fato, mesmo porque não há, em contrapartida, uma definição do que seja casamento, partindo a legislação somente dos efeitos deste - como o de estabelecer uma comunhão plena de vida (art. 1.511) e de assunção mútua, pelos cônjuges, da condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família (art. 1.565) -, e dos deveres gerados pela comunhão - como o de fidelidade recíproca, vida em comum, no domicílio conjugal, mútua assistência, respeito e consideração.

Os mencionados dispositivos legais, talvez por tradição arraigada ao que normalmente ocorre, tentam caracterizar o casamento a partir de finalidades típicas e modeladas, na linha de antiga doutrina que identifica as «finalidades» do casamento, a partir de três teorias: a) a que ressalta o aspecto das relações físicas entre os cônjuges; b) a que dá primazia ao aspecto social; e c) a que busca um equilíbrio entre as duas primeiras, afirmando que ambos os fatores (biológico e social) intervêm na formação do casamento (COUTRO, Antônio Carlos Mathias [et. al.]. Cometários ao Código Civil, v. 17. Sálvio de Figueiredo Teixeira (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 71).

De toda maneira, o certo é que a inobservância, por exemplo, de um dos deveres legalmente instituídos para o casamento, ou a não ocorrência de um dos seus efeitos, como o estabelecimento de comunhão plena de vida comum no domicílio conjugal, ou de uma correponsabilidade pelos encargos da família (art. 1.565), ou, ainda, a manutenção de uma sociedade conjugal por finalidades outras que não as tradicionalmente imaginadas pela doutrina ou pela sociedade, nada disso por si descaracteriza como casamento essa união voluntária entre duas pessoas.

As pessoas se unem e se mantêm unidas por razões que só dizem respeito a elas próprias, como bem lembra o saudoso civilista Antônio Chaves, rememorando o personagem Manuel Fulô, de Guimarães Rosa, em Sagarana, o qual, indagado dos motivos que o haviam levado a se casar, respondeu:


É o jeito. Eu só queria três coisas só: ter uma sela mexicana, pra arrear a Beija-Fulô... E ser boticário ou chefe de trem de ferro, fardado de boné! Mas isso mesmo é que ainda é mais impossível... A pois, estando vendo que não me arranjo nem de trem de ferro, nem farmácia nem a sela, me caso... Me caso! seu doutor (Apud. COUTRO. Op. cit., p. 71).

Deveras, o casamento não possui um arquétipo bem definido que deva ser obrigatoriamente aceito pelos cônjuges - muito menos imposto pelo Estado -, constituindo manifestação vicejante da liberdade dos consortes o modo pelo qual será conduzida a vida em comum, liberdade que se harmoniza bem com o fato de que a intimidade e a vida privada são invioláveis e exercidas, na generalidade das vezes, em um recôndito espaço privado também erguido pelo ordenamento jurídico à condição de «asilo inviolável».

Relembre-se, por exemplo, que o próprio Código Civil prevê a celebração de casamento por formas excepcionais, o chamado casamento em «iminente risco de vida» (art. 1.539) e o casamento nuncupativo (1.540 e 1.541), que podem ocorrer em circunstâncias que, para um dos nubentes, «não há a mínima esperança de salvação» ou quando a «duração da vida não poderá ir além de alguns instantes ou horas» (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.115).

Esse fato denuncia que, até mesmo a Lei Civil, que noutra passagem impõe deveres, efeitos e finalidades bem definidas para o casamento, não estabelece rol absoluto para esse histórico instituto.

Essas ideias são expostas com maestria por mentes arejadas que não vêem na Lei Civil ambientação propícia a regramento de situações nas quais o Estado (Juiz ou Legislador) é e sempre foi absolutamente estranho:


De qualquer modo, não é difícil notar que a vida privada é o refúgio impenetrável da pessoa, protegido em face da coletividade e merecendo especial proteção. Ou seja, é o direito de viver a sua própria vida em isolamento, não sendo submetido à publicidade que não provocou, nem desejou.


São situações atinentes aos aspectos amorosos, sexuais, religiosos, emocionais..., de uma pessoa. Aquilo que diz respeito ao seu eu.


Ora, diante desta breve delimitação, não há qualquer dúvida de que um dos campos mais férteis para vislumbrar a necessidade de proteção da privacidade diz respeito às relações familiares. É que no seio da família a pessoa humana desenvolve a sua personalidade e os seus atributos personalíssimos, ampliando a necessidade de efetiva proteção contra a ingerência indevida de terceiros.


Aliás, a família é o mais privado de todos os espaços do Direito Civil.


Com isso, forçoso é reconhecer a suplantação definitiva da (indevida) participação do Estado no âmbito das relações familiares, deixando de ingerir sobre aspectos personalíssimos da vida privada que, seguramente, dizem respeito somente à vontade do próprio titular, como expressão pura de sua dignidade.


PIETRO PERLINGIERI, que de há muito apregoa tais idéias, dispara, com precisão cirúrgica, que «expressão de liberdade é o poder reconhecido aos cônjuges de acordar a direção da vida familiar interpretando as exigências de ambos e da família». E mais adiante acresce que os acordos e estipulações recíprocas entre os consortes «assumem o papel de regra e de instrumento de realização do princípio de igualdade moral e jurídica e, ao mesmo tempo, relativamente à natureza e aos conteúdos da direção fixada» (FARIAS, Cristiano Chaves. ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 21).

4.2. Com efeito, retomando a análise do caso concreto, tendo o acórdão recorrido reconhecido que o falecido não havia desfeito completamente o vínculo matrimonial - o qual, frise-se, perdurou por trinta e seis anos -, só isso seria o bastante para afastar a caracterização da união estável em relação aos últimos três anos de vida do de cujus, período em que sua esposa permaneceu transitoriamente inválida em razão de acidente.

Descabe indagar com que propósito o falecido mantinha sua vida comum com a esposa, se por razões humanitárias ou por qualquer outro motivo, ou se entre eles havia «vida íntima», uma vez que tal ingerência, a toda evidência, agride a garantia de inviolabilidade da vida privada e, de resto, todos os direitos conexos à dignidade da pessoa humana.

Não se desconhece doutrina civilista mais moderna a professar entendimento de ser possível a constituição de união estável com pessoa casada, ainda que esta viva sob o mesmo teto do cônjuge, em hipóteses de «cessação do afeto», quando «os corpos estão próximos, mas os espíritos estão distantes» (TARTUCE, Flávio. Separados pelo casamento: um ensaio sobre o concubinato, a separação de fato e a união estável. in Revista brasileira de direito das famílias e sucessões. fev-mar. 2009, ano X, 8, p.64).

Porém, reconhecer a união estável paralela a um casamento em razão da cessação do afeto daqueles que convivem no mesmo domicílio, na prática, é solução de perigo extremo, porquanto o que se passa no interior de uma relação conjugal somente o casal compreende com precisão, e em não raras vezes nem mesmo as pessoas mais próximas apreendem a dimensão exata do que ocorre no íntimo da relação.

A investigação da cessação do afeto ou do distanciamento dos espíritos dos cônjuges é tarefa que, no entender deste relator, mostra-se praticamente impossível de ser exitosa, já que se insere na seara do subjetivismo íntimo e das conformações morais dos cônjuges, que possuem variados níveis de exigência recíproca.

Ou seja, uma relação que para alguns não significa casamento, pode representar para outros o modo pelo qual são confortados seus espíritos e exigências mútuas. E isso conduz à conclusão de que não há juiz no mundo que possa afirmar, com segurança, os motivos pelos quais duas pessoas mantiveram a vida sob a mesma habitação, sobretudo quando tal investigação se realiza post mortem, com «provas fúnebres» de inconsistência quase sempre evidente.

Também não se mostra conveniente, sob o ponto de vista da segurança jurídica, inviolabilidade da intimidade, vida privada e dignidade da pessoa humana, abrir as portas para o questionamento acerca da quebra da affectio familiae, com vistas ao reconhecimento de uniões estáveis paralelas a casamento válido, sob pena de se cometer grave injustiça e de se colocar em risco o direito sucessório do cônjuge sobrevivente.

Assim, alinho-me a voto proferido pela eminente Ministra Nancy Andrighi, segundo o qual «os arranjos familiares, concernentes à intimidade e à vida privada do casal, não devem ser esquadrinhados pelo Direito, em hipóteses não contempladas pelas exceções legais, o que violaria direitos fundamentais enfeixados no art. 5º, inc. X, da CF/88 – o direito à reserva da intimidade assim como o da vida privada –, no intuito de impedir que se torne de conhecimento geral a esfera mais interna, de âmbito intangível da liberdade humana, nesta delicada área de manifestação existencial do ser humano» (REsp 1.107.192/PR, Rel. Ministro Massami Uyeda, Rel. p/ Acórdão Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 20/04/2010, DJe 27/05/2010).

5. Ainda que se considere, por reforço de fundamentação, ter havido «dúvida» nas instâncias ordinárias acerca da efetiva separação de fato do de cujus, a solução a ser conferida seria a mesma, porquanto o art. 333 do CPC impõe ao autor o ônus de provar os fatos constitutivos do seu direito, os quais, em se tratando de ação declaratória de união estável ajuizada em face de espólio de homem casado, consubstanciam a existência de vínculos não eventuais, com o propósito de constituição de família, e sobretudo, de maneira induvidosa, a ocorrência de separação de fato.

Nesse sentido, já decidiu a Terceira Turma que «se os elementos probatórios atestam a simultaneidade das relações conjugal e de concubinato, impõe-se a prevalência dos interesses da mulher casada, cujo matrimônio não foi dissolvido, aos alegados direitos subjetivos pretendidos pela concubina, pois não há, sob o prisma do Direito de Família, prerrogativa desta à partilha dos bens deixados pelo concubino» (REsp 931.155/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 07/08/2007, DJ 20/08/2007, p. 281).

Assim, se o acervo probatório exigir julgamento por presunção, presume-se o que normalmente ocorre, de modo que, por ser de ordinário que as pessoas casadas não estão separadas de fato, o ônus de provar a separação recai sobre a concubina, contra quem militam, a um só tempo, a condição de autora da ação de união estável e a presunção decorrente da situação de legalidade da qual se beneficia a esposa.

De resto, a assertiva do acórdão recorrido, segundo a qual fora a autora, ora recorrida, que acompanhou o de cujus nos últimos dois anos em tratamento ortopédico a que foi submetido, somente corrobora, com a devida venia, o equívoco da decisão, a menos que pretendesse o Tribunal a quo fosse a esposa, que estava inválida, a acompanhante do falecido no mencionado tratamento.

3. Diante do exposto, dou provimento ao recurso especial para julgar improcedente o pedido deduzido na ação de reconhecimento de união estável, restabelecendo a sentença, inclusive nos seus consectários sucumbenciais. ...» (Min. Luis Felipe Salomão).»

Doc. LegJur (123.9262.8001.1900) - Íntegra: Click aqui


Referência(s):
Família (Jurisprudência)
União estável (v. Concubinato ) (Jurisprudência)
Concubinato (v. União estável ) (Jurisprudência)
Ação de reconhecimento (v. União estável ) (Jurisprudência)
Homem casado (v. União estável ) (Jurisprudência)
Ônus da prova (v. União estável ) (Jurisprudência)
Prova (Jurisprudência)
CCB/2002, art. 1.723, § 1º
CCB/2002, art. 1.727
CF/88, art. 226, § 3º
Lei 9.278/1996 (Legislação)
Lei 8.971/1994, art. 9 (Legislação)
CPC, art. 333
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