Jurisprudência Selecionada

Doc. LEGJUR 451.4239.9756.5405

1 - TST AGRAVO DE INSTRUMENTOREDUÇÃO DA JORNADA SEM PREJUÍZO DO SALÁRIO. TRABALHADORA COM ENCARGOS DE FAMÍLIA. FILHO COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA - TEA. TRANSCENDÊNCIA SOCIAL DA CAUSA RECONHECIDA.

Reconhecida a transcendência social da controvérsia, bem como demonstrada a afronta aos arts. 227, cabeça, da CF/88 e 7º, item II, da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, dá-se provimento ao Agravo de Instrumento a fim de determinar o processamento do Recurso de Revista.RECURSO DE REVISTAREDUÇÃO DA JORNADA SEM PREJUÍZO DO SALÁRIO. TRABALHADORA COM ENCARGOS DE FAMÍLIA. FILHO COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA - TEA. TRANSCENDÊNCIA SOCIAL RECONHECIDA. 1. Considerando que a proteção à maternidade e à infância constitui direito social assegurado no art. 6º, cabeça, da CF/88, resulta inafastável o reconhecimento da transcendência da causa com relação aos reflexos gerais de natureza social. 2. Cinge-se a controvérsia a definir se a reclamante tem direito à redução da jornada sem prejuízo do salário, em virtude dos encargos decorrentes do tratamento de saúde de seu filho, criança com Transtorno do Espectro Autista (TEA). 3. Resulta incontroverso nos autos que a trabalhadora cumpre jornada de trabalho de trinta horas, bem como que o médico neurologista responsável pelo acompanhamento da criança lhe prescrevera aproximadamente quarenta horas semanais de tratamento multidisciplinar. Consta do acórdão prolatado pelo Tribunal Regional, ademais, que a reclamante trouxe aos autos «relatório de avaliação multidisciplinar com plano de ensino individualizado (PEI), conforme ID 960893b, no qual consta que o menor possui necessidade de intervenção terapêutica nas áreas de psicologia, com especialidade em ABA naturalística, fonoaudiologia, terapia ocupacional, fisioterapia e nutrição, haja vista a verificação de inúmeros atrasos no neurodesenvolvimento (p. 2.052). 4. Hipótese de aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, do Conselho Nacional de Justiça, cuja obrigatoriedade foi estabelecida por meio da Resolução CNJ 492/2022. Para além da dimensão trabalhista de proteção ao exercício da maternidade como uma manifestação da personalidade, dos projetos de vida e da vida de relações da trabalhadora, que impõe o julgamento com lentes de gênero, imperioso proceder ao exame do caso concreto com perspectiva também dos direitos da infância e da pessoa com deficiência. 5. Com efeito, o caso concreto diz respeito ao equilíbrio entre o trabalho produtivo e o trabalho reprodutivo, um dos maiores desafios à garantia de uma vida digna e à tutela do bem-estar físico e psicossocial de mulheres inseridas no mercado de trabalho. O fato de que os cuidados com os filhos recaem preponderantemente sobre as mulheres configura fato notório, independente da produção de provas, nos termos do CPC/2015, art. 374, I, não havendo falar em necessidade de a reclamante comprovar sua condição de cuidadora principal do próprio filho. 6. O Direito Internacional reconhece a centralidade da proteção à maternidade e à infância para a concretização dos direitos humanos. Nesse sentido, a Declaração Universal dos Diretos Humanos da Organização das Nações Unidas, de 1948 (art. 25, item 2) e o Anexo à Constituição da Organização Internacional do Trabalho - Declaração de Filadélfia, de 1944 (item 3, h). 7. Especificamente no que tange à proteção da criança com deficiência, a Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (2006), incorporada ao ordenamento jurídico com status de emenda constitucional, estabelece que, «[e]m todas as ações relativas às crianças com deficiência, o superior interesse da criança receberá consideração primordial (art. 7º, item 2). No mesmo sentido, o art. 227, cabeça, da CF/88, que impõe à família, à sociedade e ao Estado o dever de tutela integral e absolutamente prioritária do interesse da criança, do adolescente e do jovem. Trata-se, portanto, de compromisso constitucional e internacionalmente assumido com vista à realização do melhor interesse da criança com deficiência. 8. A Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência impõe aos Estados Partes a adoção das medidas necessárias para assegurar à criança com deficiência o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, em igualdade de oportunidades com as demais crianças (art. 7º, item 1), inclusive o recebimento de atendimento adequado à sua deficiência e idade (art. 7º, item 3). A Lei 12.764/2012 (Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista) reconhece, a seu turno, o direito de acesso a serviços de saúde com vista à atenção integral às suas necessidades, incluindo, entre outras medidas, o diagnóstico precoce e o atendimento multiprofissional (arts. 2º, III, e 3º, III, s a e b). 9. Verifica-se, portanto, que o ordenamento jurídico contempla amplo arcabouço normativo no que se refere à tutela do direito fundamental de acesso ao adequado tratamento para crianças com Transtorno do Espectro Autista. Não basta, no entanto, que a criança tenha tais direitos formalmente reconhecidos. É preciso, nos termos do disposto no art. 227, cabeça, da CF/88, que família, Estado e sociedade assegurem a sua efetividade, com prioridade absoluta. Imperioso, daí, o cumprimento do dever comum de proporcionar à criança com TEA condições efetivas de materialização desses direitos. Em outras palavras, a criança com Transtorno do Espectro Autista deve ter garantido o acesso à gama de tratamentos prescritos pela equipe multidisciplinar que acompanha o seu desenvolvimento, a fim de que lhe seja possível uma vida digna, com bem-estar físico e psicossocial e pleno desenvolvimento. Para tanto, é indispensável a presença - física e afetiva - da cuidadora. 10. Nesse cenário, a conclusão a que chegou o Tribunal Regional do Trabalho, no sentido da possibilidade de a mãe-trabalhadora acumular 6 horas diárias da jornada de trabalho remunerado junto à reclamada com as 40 horas semanais das demandas decorrentes da condição de seu filho resulta em um total de 14 horas diárias de trabalho remunerado e de trabalho de cuidado não remunerado, se considerados apenas os dias úteis da semana. Restariam, assim, à reclamante, na melhor das hipóteses, 10 horas diárias para repouso, alimentação, higiene pessoal e locomoção, além das atividades de trabalho doméstico não remunerado, indispensável à reprodução social, em especial quando há pessoas na fase da primeira infância e/ou com deficiência na estrutura familiar. Observe-se que nem sequer se computou, nesse cálculo, o tempo necessário ao efetivo gozo de direitos sociais básicos como saúde, lazer, esporte e cultura. 11. A partir de uma perspectiva interseccional, a manutenção da jornada de trabalho de 30 horas semanais, ou 6 horas diárias, afetará, invariavelmente, o tratamento necessário à garantia de uma vida digna à criança, bem como o seu direito à convivência familiar e comunitária, preconizado pelo ECA, art. 19. A manutenção do entendimento sufragado por meio do acórdão prolatado pelo Tribunal Regional resultaria em evidente obstáculo ao «desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade, tutelado por meio do art. 3º, parágrafo único, do ECA. Ademais, o acúmulo de 70 horas semanais de trabalho remunerado e não remunerado consubstancia potencial fator de adoecimento psicossocial da trabalhadora e, consequentemente, potencial ameaça ao bem-estar da criança com deficiência sob seus cuidados. 12. A inexistência de dispositivo específico na legislação trabalhista brasileira a respeito da redução de jornada para trabalhadora com encargo de cuidado de criança com deficiência não obsta, por si só, a aplicação imediata das normas de direitos fundamentais e direitos humanos que disciplinam o direito de acesso ao tratamento adequado, o dever de tutela do interesse da criança, com prioridade absoluta, por parte da família, da sociedade e do Estado, à luz da dignidade da pessoa humana e da função social da propriedade privada. Diante da lacuna normativa no âmbito interno, no que tange à possibilidade de redução de jornada para a trabalhadora contratada sob o regime da CLT e responsável pelo cuidado de criança com deficiência, impõe-se o julgamento nos termos do CLT, art. 8º, que, na falta de disposições legais ou contratuais, autoriza o julgador a valer-se da jurisprudência, da analogia, da equidade, dos princípios e normas gerais de direito, dos usos e costumes e do direito comparado. Nesse sentido, no que tange ao direito comparado, tem-se que a Diretiva 1.158/2019 do Conselho da União Europeia, sobre o equilíbrio entre vida profissional e vida pessoal para pais, mães e cuidadores, estabelece que disposições flexíveis de trabalho devem ser adaptadas às necessidades específicas, como as de pais e mães de crianças com deficiência ou doença prolongada (item 37). A Convenção 156 da OIT, a seu turno, embora ainda não ratificada pelo Brasil, o foi por todos os demais países integrantes do Mercosul, incorporando-se, portanto, aos seus ordenamentos jurídicos internos. A Recomendação 165 da OIT, que desenvolve as normas da mencionada Convenção, servindo de orientação geral para a implementação de políticas nacionais, determina a adoção de «todas as medidas compatíveis com as condições e as possibilidades nacionais e com os legítimos interesses de outros trabalhadores, para assegurar que as condições de emprego permitam a trabalhadores com encargos de família conciliar seu emprego e esses encargos. 13. Nesse sentido, conclui-se que a redução da jornada diária da trabalhadora é medida alinhada às normas de direitos fundamentais relacionadas à proteção da maternidade, à equidade de gênero no mundo do trabalho e à tutela do superior interesse da criança com deficiência. Considerando a lacuna normativa também no que se refere aos parâmetros para redução da jornada, esta Corte superior vem aplicando por analogia a casos semelhantes ao dos autos, nos termos do CLT, art. 8º, o Lei 8.112/1990, art. 98, §§ 2º e 3º. Precedentes. 14. Diante de requerimento expresso de concessão de tutela de urgência, bem como ante a demonstração da plausibilidade do direito e do perigo na demora, defere-se a antecipação dos efeitos da presente decisão judicial, a fim de determinar a imediata redução da jornada de trabalho da reclamante para quatro horas diárias, totalizando vinte horas semanais, independentemente do seu trânsito em julgado. Com efeito, a necessidade de tratamento e atenção materna da criança diagnosticada com TEA é urgente e imediata, revelando-se plausível o temor do perecimento do direito, caso sua implementação seja postergada. 15. Recurso de Revista conhecido e provido, com manutenção do deferimento da tutela provisória de urgência requerida no apelo para determinar a imediata redução da jornada de trabalho da reclamante para quatro horas diárias, totalizando vinte horas semanais, sob pena de multa diária.... ()

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