Jurisprudência em Destaque

STF. Pleno. Moeda. Dinheiro. Conceito de moeda, curso legal e curso forçado. Amplas considerações do Min. Eros Grau sobre o tema. Lei 1.807/1953. Lei 4.131/1962, art. 23. Lei 8.880/1994. Dec.-lei 857/1969, arts. 1º e 2º.

Postado por Emilio Sabatovski em 24/01/2012
«... 14. Ao deslinde da questão importa necessária consideração do conceito de moeda, conceito jurídico. Que aqui se trata de um conceito jurídico - não de conceito específico da Ciência Econômica - isso percebemos ao cogitar das funções básicas que a moeda desempenha na intermediação de trocas e como instrumento de reserva de valor e padrão de valor. O chamado poder liberatório da moeda permite ao seu detentor, sem limites ou condições, a exoneração de débitos de natureza pecuniária.

15. A suspensão da conversibilidade da moeda jamais impediu fossem, aquelas funções, correntemente instrumentadas. Circulação e aceitação da moeda não encontram fundamento no lastro metálico que suportaria a sua conversão ou no material de cunhagem de peças monetárias. A desmaterialização que caracteriza a evolução das suas formas de moeda decorre da circunstância de a circulação monetária estar ancorada na definição, pelo direito posto pelo Estado, de determinado instrumento ou padrão como moeda. Os enunciados legais, contratuais, obrigacionais, as condenações cíveis, trabalhistas, penais - de cunho pecuniário - a generalidade das manifestações jurídicas que encerram aferição patrimonial somente se podem efetivar mediante alusão ao padrão definido como moeda pelo direito positivo. Eis aí, então, a moeda como padrão de valor, padrão de que apenas se pode e deve utilizar nos limites e sob estritas condições definidas pelo direito positivo.

16. O parâmetro quantitativo da ordem jurídica atinente a todos os negócios jurídicos de índole patrimonial, todas as relações processuais [ainda que de valor inestimável para efeito das custas do processo], a todas as imposições de ordem tributária, a todas as autorizações de despesa para a execução dos orçamentos públicos, esse parâmetro, dizia, é enunciado em unidade cuja validade há de ser inquestionável. Essa unidade, monetária, sua validade do fato de ser definida no bojo do direito positivo.

17. é, pois, conceito jurídico. Única e exclusivamente na medida em que isso seja perfeitamente compreendido poder-se-á levar a bom termo o desafio que a compreensão de sua disciplina encerra. E assim é ainda que o traço quantitativo que lhe é próprio na maioria das vezes conduza o estudioso ao equívoco de ignorá-la como objeto de indagação jurídica. Os estudos da economia fornecem, sim, importante contribuição à compreensão da moeda na exposição dos fluxos monetários, dos mecanismos de crédito, do produto da atividade econômica. Ainda que seja assim, no entanto, no campo da economia cogita-se exclusivamente do atributo quantitativo da moeda, o que não basta, é insuficiente. Pois o que importa é estarmos cientes de que a moeda exprime, para e no que se presta, quantidades dotadas de validade jurídica. Deixe-se, portanto, este aspecto bem vincado: a moeda constitui, a um só tempo, parâmetro e objeto da ordem jurídica.

18. Em outras ocasiões (2), cogitando dos conceitos jurídicos, observei terem eles por finalidade ensejar a aplicação de normas jurídicas. Expressados, são signos de signos [significações] cuja finalidade é a de possibilitar essa aplicação. Prestam-se a permitir [= assegurar] a obtenção de certeza e segurança jurídicas. Por isso existem -- isto é, devem existir -- «para nós» e não apenas «para mim». Os conceitos jurídicos são usados não para definir essências, mas sim - repito - para permitir e viabilizar a aplicação de normas jurídicas. Esses, o seu destino e a sua vocação: constituem um ponto terminal de regras, um termo relacionador de princípios e regras. Não sendo signos de coisas [coisas, estados ou situações], os conceitos jurídicos atuam como referenciais que, em si, não estão ligados a nenhuma coisa [coisas, estados ou situações], embora aptos a ligar-se a qualquer coisa [coisa, estado ou situação], dentro de um elenco finito.


▪ (2) Direito, conceitos e normas jurídicas, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1988, págs. 66 e ss., e Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, 5 edição, Malheiros Editores, São Paulo, 2009, págs. 228 e

19. Resulta destarte fluente o entendimento da afirmação de KARL OLIVECRONA (3), alusiva à unidade monetária: «The search for the entities called monetary units has been in vain and must be so. No such units are in existence. The word for the monetary unit has no semantic reference at all». A palavra «moeda» efetivamente não tem referência semântica. Assim, o que possibilitou ao homem prescindir dos metais preciosos como instrumento de troca foi a institucionalização normativa da unidade monetária, do que decorre a circunstância de «moeda» ser vocábulo que apenas assume sentido quando utilizada sob certas normas jurídicas, no quadro de um determinado sistema de direito positivo. Inexistisse essa referência [referência a normas jurídicas] e promessas de pagamento e pagamentos seriam sons e gestos despidos de sentido - «meaningless sounds and gestures», diz OLIVECRONA (4). Os bons economistas o sabem e as doutrinas econômicas tomam a moeda como convenção. O fenômeno da «dissolução da moeda», na hiperinflação, não é senão expressivo do rompimento dessa convenção, rompimento que se dá quando perece a funcionalidade do ordenamento jurídico monetário.


▪ (3) Law as fact, second edition, Stevens & Sons, London, 1.971, pág. 301.


▪ (4) Ob. cit., pág. 303.

20. Por isso os vocábulos «lira», «dólar», «marco», «real» só ganham significado quando referidos a normas integradas em determinado ordenamento jurídico, que os contemple como indicativos da unidade monetária juridicamente válida no espaço por ele abrangido.

21. A moeda, pois, não é senão um nome sacralizado pela ordem jurídica. Em 30 de junho de 1994 ano o "real" passou a ser moeda [= unidade monetária] brasileira única e exclusivamente porque assim o disse, definindo-o como tal, o direito positivo brasileiro, inovado pela Medida Provisória 542/94. Todos as demais unidades monetárias como tais definidas pelos ordenamentos jurídicos de outros Estados não revestem, no quadro do direito positivo brasileiro, a qualidade de moeda. Não encerram os atributos monetários de validade e eficácia indispensáveis ao cumprimento de sua função de padrão de valor e de liberação de débitos pecuniários. Podem, é certo, consubstanciar reserva de valor, objeto de avaliação patrimonial, coisa no sentido jurídico [= elemento que se inclui no patrimônio de sujeito de direito], constituindo instrumento de pagamento nos mercados externos. Seu comércio é, contudo, submetido a regras próprias e específicas(5).


▪ (5) Daí o Decreto-lei 857, de 11 de setembro de 1969, que tutela o curso legal da moeda nacional, e a disciplina cambial ( Lei 1.807, de 07/01/1953, e sua regulamentação - Decreto 42.820, de 16/12/1957) - e o artigo 23 da Lei 4.131, de 3 de setembro de 1962).

22. Isso posto - moeda é conceito jurídico - importa distinguirmos, no vocábulo "moeda", outros sentidos além daquele que assume enquanto termo do conceito de moeda. É que o vocábulo é ambíguo, conotando também as peças metálicas, a forma e as dimensões usuais dessas mesmas peças e, ainda, unidades de conta inúmeras vezes utilizadas na composição de diferentes negócios jurídicos. Daí dizer-se que a ação de companhia é a "moeda do acionista"; que determinado número índice é a "moeda de conta"; ou que a aceitação de bens de certa categoria para pagamento de determinada obrigação lhes atribui a qualidade de "moeda". Nessas diferentes situações, a linguagem comum vale-se das figuras usuais e corriqueiras da metáfora e da metonímia visando a expressar sentidos mais simples para a comunicação social. Em nenhuma dessas hipóteses, contudo, cuida-se, juridicamente, de moeda. Haverá, em cada caso, indexação, permuta, cessão de crédito, direitos patrimoniais sobre determinado acervo. Mas não haverá moeda.

23. A moeda está inserida, enquanto conceito jurídico, na estrutura dos diferentes negócios e diversamente os qualifica, segundo a função que em cada qual exerce. Conserva sempre em si, no entanto, a virtualidade de suas funções. Ou o instrumento monetário desempenha suas funções isoladamente, de forma plena; ou cumpre suas funções paralelamente à consideração quantitativa de diverso elemento, tomado como referência de valor. Neste segundo caso, ainda, dirá respeito aos mecanismos de indexação ou a situações nas quais as estipulações quantitativas tomam por base outra moeda - padrão de valor válido perante o ordenamento jurídico nacional (6).


▪ (6) Exemplifique-se com a moeda estrangeira, nas hipóteses contempladas no artigo 2º do Decreto-lei 857, de 11/09/69, e com a Unidade Real de Valor, criada pela Lei 8.880/94, de 27 de maio de 1.994.

24. Instrumentar pagamentos e constituir padrão de valor são funções que a moeda desempenha mercê de sua validade e de sua eficácia jurídicas. No plano do padrão de valor prevalece o atributo da validade do enunciado; enquanto instrumento de pagamento, a ele é agregado o da eficácia. São válidas as estipulações enunciadas no padrão monetário definido pelo direito positivo e aplicável ao negócio em questão; é eficaz o pagamento realizado através do instrumento válido para tanto. Insisto em que moeda é conceito jurídico: é no plano da linguagem jurídica que se resolve qual é esse padrão de valor e qual é o instrumento monetário que se pode usar com eficácia. A funcionalidade do conceito de moeda revela-se em sua utilização no plano das relações jurídicas. O instrumento monetário válido é padrão de valor e, enquanto instrumento de pagamento, dotado de poder liberatório: sua entrega ao credor libera o devedor. Poder liberatório é qualidade, da moeda enquanto instrumento de pagamento, que se manifesta exclusivamente naquele plano jurídico: somente ela permite essa liberação indiscriminada, a todo sujeito de direito, no que tange a débitos de caráter patrimonial.

25. Trata-se, aí, de poder - ideia que compõe o núcleo da ordem jurídica - que dela nasce e decorre: o direito positivo é o seu fundamento na medida em que pretende conformar a ordem e instituir os mecanismos de ação do poder, conformando sua operacionalidade. Nesse sentido, reduz complexidades, especialmente as que se manifestam nos mercados, no âmbito dos quais determinadas questões - quem pode comprar? com o que se pode pagar? o que deve ser pago? - são solucionadas em razão da definição, pela ordem jurídica, da moeda. A impessoalidade das relações de mercado repousa na definição do instrumento monetário pelo direito posto pelo Estado, o que - repito - elimina complexidades, como anota Tércio Sampaio Ferraz Jr.(7), ou as reduz enormemente, na superação de atributos pessoais dos parceiros, de peculiaridades inerentes às diferentes situações jurídicas em que se encontrem. Os termos das relações são reduzidos ao instrumento monetário, que as valida e confere eficácia aos negócios.


▪ (7) TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR., A Bolsa de Valores como sistema de poder, em coautoria com Raimundo Magliano Filho, in Revista de Direito Econômico, n. 14, ano 6, Brasília, 1.980, pág. 9.

26. A exposição até este ponto desdobrada permite a enunciação das seguintes observações conclusivas:


[i] a moeda assegura a liberdade e independência do seu titular;


[ii] parte do poder do Estado integra-se a cada unidade monetária; essa parcela de poder é exercitada pelos sujeitos de direito na prática de atos de consumo, poupança ou investimento - ou, simplesmente, no exercício dos diferentes direitos subjetivos que pode deter o titular de moeda;


[iii] a moeda estabelece uma relação de igualdade entre os sujeitos de direito [entenda-se igualdade formal], na medida em que opera redução de complexidades (8).


▪ (8) Neste último sentido, a afirmação de von MERINO (Der Zweck im Recta, Erster Band, Zweite Umgearbeite Auflage, Druck und Verlag von Breitkopf & Härte, Leipzig, L884, págs. 229/230): «A indiferença do comércio jurídico pelo que toca à personalidade equivale à igualdade absoluta de todos no comércio jurídico. Em parte alguma o princípio da igualdade se acha mais completamente realizado na prática. O dinheiro é o verdadeiro apóstolo da igualdade. Os preconceitos sociais, todas as antíteses sociais, políticas, religiosas, nacionais, são impotentes contra ele».

27. A aptidão da moeda para o cumprimento dessas funções decorre da circunstância de ser ela tocada pelos atributos do curso legal e do curso forçado.

28. O primeiro - o curso legal - expressa a qualidade de valor líquido da moeda, em razão do que ela não pode ser recusada. O curso legal assegura a ampla circulação e imposição de aceitação da moeda; daí a sua caracterização como meio de pagamento.

29. Já o curso forçado é qualidade da moeda inconversível, vale dizer, de instrumento monetário que não pode ser convertido em algum bem que represente o valor nela declarado.

30. A exclusividade de circulação da moeda está relacionada ao curso legal, que respeita ao instrumento monetário enquanto em circulação; não decorre do curso forçado, dado que este atinge o instrumento monetário enquanto valor e a sua instituição [do curso forçado] importa apenas em que não possa ser exigida do poder emissor sua conversão em outro valor.

31. O curso legal é determinante e condicionante das duas funções básicas da moeda: a de instrumento de pagamento e a de padrão de valor. A suposição de que o curso legal respeite apenas ao dinheiro fisicamente considerado, sem afetar a função, da moeda, de padrão de valor, não é correta. A validade do negócio jurídico depende da adoção da moeda que definirá o montante a pagar. Tanto é assim que se tomarmos, por exemplo, o Decreto-lei 857, de 11/09/1969, que disciplina o curso legal da moeda nacional, verificaremos que seu artigo 2º dispõe sobre as hipóteses em que, excepcionalmente, se admite a cláusula de pagamento em moeda estrangeira. Esse artigo 2º não derrogou a exclusividade de circulação da moeda brasileira e seu caráter de instrumentação de pagamentos no país. O que define o preceito veiculado por este artigo é unicamente a possibilidade de, nos casos que discrimina, ser adotada cláusula de apuração do quantum a pagar segundo a paridade da moeda brasileira com moeda estrangeira. O curso legal tutelado pelo artigo 1º desse decreto-lei abrange tão somente a função de padrão de valor da moeda. O curso legal é atributo do instrumento que circula com exclusividade, dotado de determinado valor-padrão [aí o padrão de valor]. Em outros termos: o instrumento dotado de exclusividade de circulação é a moeda tal, expressiva de certo e determinado valor [padrão] e não de qualquer valor. Não fosse assim, a moeda não seria uma medida; não fosse assim, a exclusividade de circulação nada, absolutamente nada, significaria.

(...). (Min. Eros Grau).»

Doc. LegJur (12.5645.3000.6900) - Íntegra: Click aqui


Referências:
Moeda (Jurisprudência)
Dinheiro (v. Moeda ) (Jurisprudência)
Conceito (v. Moeda ) (Jurisprudência)
Curso legal (v. Moeda ) (Jurisprudência)
Curso forçado (v. Moeda ) (Jurisprudência)
(Legislação)
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