Jurisprudência em Destaque
STJ. 3ª T. Recurso. Legitimidade recursal. Deficiente físico. Pessoa com deficiência. Ação individual. Processo de jurisdição voluntária. Transação. Pedido de homologação de acordo extrajudicial. Legitimidade do Ministério Público para recorrer. Acordo aceito pelo deficiente físico. Autonomia da vontade. Considerações da Minª. Nancy Andrighi sobre o tema. Lei 7.853/1989, art. 5º.
O argumento utilizado pelo MP para justificar sua intervenção é o de que o art. 5º da referida Lei estabelece, de forma ampla, que «O Ministério Público intervirá obrigatoriamente nas ações públicas, coletivas ou individuais, em que se discutam interesses relacionados à deficiência das pessoas».
Para o parquet, não é o simples fato de um litigante ser deficiente que justifica sua atuação, mas a discussão, no processo, de questão relacionada a essa deficiência. Apoiando-se na doutrina de Herman Benjamim, argumenta que a proteção do deficiente «é exercida em nome do indivíduo ou do grupo, mas sempre em proveito de todos os integrantes da classe». O que sustentaria a intervenção do MP, nessas situações, seria o fato de que «os conflitos de interesse que afetam os portadores de deficiência, na sua qualidade de portadores de deficiência, na sua relação como tal com o restante do grupo, carreiam um imenso conteúdo de interesse público».
Trazendo esses ensinamentos à hipótese dos autos, o MP argumenta que «a nova transação impugnada pelo Ministério Público através do apelo tem por objeto direito indisponível porque relacionado à saúde, que não pode ser renunciado pelo trabalhador». Para o parquet, não obstante o tratamento de saúde tivesse sido reduzido a uma expressão monetária, a questão estaria em «saber se saúde e dinheiro são bens fungíveis entre si». Para o MP, essa fungibilidade seria impossível.
O cerne da questão, contudo, está, em verdade, no confronto entre a liberdade de contratar, conferida a qualquer parte maior e capaz, e a proteção especial que a lei deve conferir ao deficiente.
Na ata de audiência na qual o acordo foi submetido a homologação (fl. 47, e-STJ) consta, com todas as letras, que «pela MM. Juíza foi lido os termos (sic) da retificação do acordo apresentado para homologação ao senhor Donizete Duarte Pinheiro, o qual se disse ciente do teor e implicação de todas as cláusulas, bem como de pleno acordo com a sua homologação». Ou seja: a pessoa deficiente, no pleno gozo de suas faculdades mentais, em um ato de manifestação livre de vontade, decidiu celebrar o acordo pelos termos nele contidos. Não há, no processo, qualquer elemento que indique redução, por parte do recorrido, de seu discernimento. Ele é, assim, do ponto de vista da capacidade civil, uma pessoa completa, capaz, como outra qualquer, de adquirir direitos e assumir obrigações sem qualquer assistência.
Nessa circunstância, não se pode admitir que o MP, atuando no suposto auxílio da pessoa deficiente, negue-se a lhe garantir o direito básico de manifestar livremente sua vontade. Já basta a ele a violência decorrente de sua limitação física. Não é admissível praticar uma segunda violência, tratando-o como se fosse relativamente incapaz, a necessitar de proteção adicional na prática de atos ordinários da vida civil, proteção essa que chegue ao extremo de contrariar uma decisão que ele próprio tomou acerca dos rumos de sua vida. Correta ou errada a decisão, é direito da pessoa tomá-la com autonomia e independência.
No mesmo artigo doutrinário citado pelo MP em seu recurso (O Ministério Público e a pessoa portadora de deficiência, in Questões de Direito Civil e o Novo Código Civil, 1ª Edição, São Paulo: Imprensa Oficial do MPSP, 2004, pág. 338), Hugo Nigro Mazzilli pondera que «é inaceitável, é criminoso mesmo que uma pessoa portadora de uma deficiência qualquer seja impedida do acesso a cargos e empregos ou impedida da fruição de bens da vida que em nada dependam de sua limitação. E isso porque - ainda que portadora de deficiência de qualquer natureza - a pessoa jamais tem diminuída, em proporção mínima que seja, sua dignidade de ser humano». A proteção ao deficiente, portanto, tem como meta a promoção da igualdade substancial, de modo a «tratar diferentemente os desiguais, na medida em que se busque compensar juridicamente a desigualdade, igualando-os em oportunidades». A desigualdade jurídica, assim, vem para compensar uma desigualdade fática. Daí a ideia, também sustentada por Mazzilli, de que «quando pessoas portadoras de deficiência se põem a litigar sobre matéria que diga respeito com a deficiência, e, mais ainda, que aproveite a toda a uma categoria de pessoas, o interesse público justifica a intervenção do Ministério Público» (pág. 350).
Contudo, essa postura não pode chegar a extremos. É claramente ofensivo à dignidade do recorrente limitar-lhe a prática de atos da vida civil. O argumento de que «o direito à saúde é indisponível» e que, portanto, não pode haver sua redução a um quociente monetário, é equivocado. A qualquer adulto saudável é dado, por exemplo, contratar ou rescindir um contrato de seguro-saúde. Qualquer pessoa pode optar por receber tratamento particular, pagando o preço correspondente, ou valer-se da saúde pública. Por que ao deficiente físico não pode ser dada, igualmente, essa opção? No acordo objeto de homologação, o deficiente físico não renunciou a um tratamento de saúde. Apenas optou pelo tratamento na rede pública.
Não há, portanto, violação ao dispositivo indicado. ...» (Minª. Nancy Andrighi).»
Doc. LegJur (127.0531.2000.7000) - Íntegra: Click aqui
Referência(s):
▪ Recurso (Jurisprudência)
▪ Legitimidade recursal (Jurisprudência)
▪ Deficiente físico (Jurisprudência)
▪ Pessoa com deficiência (v. ▪ Deficiente físico) (Jurisprudência)
▪ Ação individual (v. ▪ Deficiente físico) (Jurisprudência)
▪ Jurisdição voluntária (Jurisprudência)
▪ Transação (v. ▪ Deficiente físico) (Jurisprudência)
▪ Homologação de acordo extrajudicial (v. ▪ Deficiente físico) (Jurisprudência)
▪ Ministério Público (v. ▪ Deficiente físico) (Jurisprudência)
▪ Autonomia da vontade (v. ▪ Deficiente físico) (Jurisprudência)
(Legislação)
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